Ana Kesselring


A artista vem desenvolvendo um trabalho que se foca na compreensão e representação de uma noção de corpo expandido. O corpo, no caso de sua pesquisa, engloba o humano - na maior parte das vezes feminino -  mas também o corpo animal, vegetal e mineral. Buscando maneiras de amalgamar esses elementos diversos, de forma a refletir a interdependência dos corpos do mundo e a interligação de todas as espécies viventes. Os trabalhos são constantemente fragmentados, de forma a evidenciar uma vontade de unir, mas também a dificuldade para tanto.
Ana Kesselring usa várias técnicas,entre elas cerâmica, gravura, pintura, desenho, fotografia.


TRABALHOS
2021
Nortando-me

2020
Relicário
Nas Junias
Aquiles Sangrando Bic

2019
Confissões Barrocas
Cogito
Redenção

2018
Coluninha
As Varíneas

2017
Empilhamento
Corpo Estranho
Corpinho
Contendo
Carapaça

2016
Corpos do Mundo
Anatomias
Coraçao de Boi
Corpos do Mundo - Desenhos
Aquáticas

2013
As Bucólicas

2012
Eva

2011
Guilhotinada

2007-2014
Corpotopias

EXPOSIÇÕES
2022
Algae Odyssey, Museu de História Natural e da Ciência, Laboratório de Química Analítica, Lisboa

2018

Arco Xabregas, Lisboa
Corpos Estranhos, Paço
Imperial, Rio
de Janeiro

2016
Ar.Co Lisboa
Ar.Co Almada
Corpos do Mundo, DConcept Escritório de Arte, São Paulo

2015
Da Escrita, Delas, Elas, Museu da República, Rio de Janeiro

2013
Portes Ouvertes, Atelier Ana Kesselring, Paris

2009
Mundo sem Molduras, MAC USP

2008
Corpotopias, Gravura Brasileira, São Paulo

2007
Corpotopias,
Galeria Sycomoreart, Paris

Corpotopias
Cité Internationale de Arts, Paris

TEXTOS
Multiespécies no trabalho de Ana Kesselring 
Regina Johas 2021


Ana Kesselring – Corpos estranhos
Ligia Canongia

Corps du Monde (Corpos do Mundo)
Fabiana de Moraes

O que é uma Corpotopia?
Henrique Marques-Samyn

Entrevista
Ju Chohfi

Tese de Mestrado, Universidade Paris 8 :
La construction de l’image dans l’oeuvre de Kiki Smith - du pli à la peau, de la peau à l’empreinte - quand les corps du monde s’entremêlent.

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Multiespécies no trabalho de Ana Kesselring



Regina Johas - 23/04/2021



Sobreposições, desvios, transparências e deslocamentos são alguns dos procedimentos que encontramos nas escolhas de Ana Kesselring ao longo de seu percurso. Desenhando um arco que vai da gravura em metal à cerâmica, seus movimentos construíram um conjunto sutil, extremamente poético e ao mesmo tempo inquietante. Seus gestos, marcas de processos que ora se repetem, ora se alternam, são vestígios de ações que buscam perscrutar aspectos de nossa relação com os corpos do mundo nessa era antropocêntrica. Mergulhando nas dobras do contemporâneo como quem busca as fissuras do tempo, Kesselring nos abre com sua obra algumas linhas de sobrevoo.

A trajetória da artista tem início com uma extensa produção em calcografia. Dentre tantas gravuras e desenhos do período, elegemos aqui uma série específica a partir da qual nosso sobrevoo se lança: Terra incógnita.  O título dessa série de gravuras em metal  — realizadas entre 2005 e 2006 — é o termo em latim para "terra desconhecida", utilizado para assinalar regiões nunca antes cartografadas. Essas gravuras sobrepõem em múltiplas camadas imagens de paisagens e pássaros diversos, deixando entrever, como nos palimpsestos, vestígios das inscrições anteriores. Segundo Kesselring, a série têm como referência os desenhos de artistas viajantes, integrantes das expedições científicas e artísticas que atravessaram as Américas desde sua descoberta, produzindo uma vasta iconografia a partir da flora, da fauna e dos povos aborígenes.

Os registros feitos por esses artistas — muitos deles hoje disponíveis no portal Brasiliana Iconográfica — nos revelam sua vocação documental, resultantes de seus deslocamentos e de suas descobertas: espécimes naturais desconhecidos, animais estranhos e homens "primitivos" eram catalogados em inventários que pudessem alimentar  o imaginário europeu acerca do Novo Mundo. Mas se podemos identificar na produção dos artistas viajantes um ímpeto catalográfico [1], as gravuras de Kesselring operam segundo uma lógica divergente,  dado que as sobreposições e transparências fazem as formas se fundirem, criando corpos amalgamados que parecem adquirir relativa autonomia em relação aos seus modelos. Assim, contrariamente ao intento catalográfico e descritivo, vemos surgir aqui arranjos intra-ativos entre corpos.


Na exposição Vestígios, Remains, realizada em 2006, na Fundação Armando Álvares Penteado, em São Paulo, o estranhamento dessas formas fundidas pela interpenetração das camadas se acentua. As gravuras foram aí dispostas em mesas/vitrines, criando outras ordenações e fusões possíveis, que fogem ainda mais da lógica descritiva dos viajantes. Por um lado o registro de pássaros e plantas ainda evocam a vontade organizadora da catalogação, por outro lado a hibridação das formas, pelas sobreposições, transparências e justaposições, evocam os gabinetes de maravilhas ou curiosidades, caracterizados pela extravagância de encontros insólitos. A estranheza dessas construções aponta para o espaço improvável de corpos contíguos, fracionados e emaranhados, que abalam “todas as superfícies ordenadas e todos os planos que tornam sensata para nós a profusão dos seres”.[2]

É na série chamada  Corpotopias que esses arranjos se assumem definitivamente e se expandem, manipulados a partir de muitos ângulos. Se antes a fusão entre os corpos se dava na sobreposição das várias camadas de papéis translúcidos, aqui a fusão se dá em cada configuração, de modo que cada corpo passa a conter em si prolongamentos inesperados, sugerindo um universo de estruturas viventes indefinidas.

Corpos impossíveis, onde não se localiza mais “nenhuma ordem ou um ‘sistema dos elementos’ — uma definição dos segmentos sobre os quais poderão aparecer as semelhanças e as diferenças, os tipos de variação de que esses segmentos  poderão ser afetados, o limiar, enfim, acima do qual haverá diferença e abaixo do qual haverá similitude”.[3]


O termo “corpotopia” justapõe os vocábulos corpus (corpo) e topos (lugar), remetendo à ideia de um corpo-campo.Reafirmando a organicidade já ensaiada anteriormente, em que pássaros e animais se fundem, constituindo corpos expandidos, esses novos trabalhos buscam dar conta da profusão dos seres, e a paleta se amplia assim incluindo formas vegetais e humanas. Surge aqui uma pesquisa em que o corpo humano se mistura com o corpo animal, organizando-se em taxonomias mais complexas. Trocas mútuas e interconexões propõem uma “transcorporalidade” em que o humano aparece enredado com o mais-que-humano.[4]

Além disso, um novo gesto surge no conjunto das Corpotopias: às gravuras e desenhos juntam-se peças recortadas em cerâmica – pedaços de formas orgânicas que se apresentam em camadas e aparecem geralmente penduradas nas parede, ao lado das gravuras e dos desenhos. As cerâmicas oferecem um contraponto ao jogo de transparências do papel de seda e avançam muito discretamente no espaço, a partir do plano da parede, anunciando uma tridimensionalidade que iria se impor somente em projetos futuros. Interessante observar que nesse primeiro movimento em direção aos processos com cerâmica prevalece a memória do desenho: as formas são resultantes de gestos que delineiam pequenas geografias ou memórias corporais. Tonalidades róseas multiplicam-se em derivações de vermelhos como o carmesim, o coral claro, o vermelho indiano, o salmão ou carmim, compondo uma rica paleta de tons entre vibrantes e suaves, talvez em alusão a sangue.

A série Corpotopias traduzem, por outro lado, um ponto de inflexão importante na produção de Kesselring. Afirmando um corpo híbrido no centro do interesse, esses trabalhos apontam para dois outros vetores que se desdobrarão a seguir: a valorização do espaço e o surgimento do fragmento como algo autônomo, ele mesmo um corpo que se propõe autossuficiente. Do ponto de vista da questão espacial, o procedimento anterior de sobreposição e justaposição de formas, que se dava dentro de cada campo visual, se expande, buscando uma dimensão instalativa. Os desenhos, combinados com as gravuras e as peças de cerâmica recortada, espalham-se pela parede e passam a configurar um todo articulado por cada um dos elementos.


O interesse pela ocupação do espaço irá impulsionar o direcionamento para o tridimensional, que passará a dominar na produção em fases posteriores. Por outro lado, surge a configuração do todo composto por pedaços, tanto na configuração geral da instalação quanto em cada forma inscrita nos diversos suportes, quer seja no papel ou na cerâmica.

Nas formas inventariadas nessa fase da produção começa a se delinear um repertório de fragmentos de corpos animais e vegetais que irão compor seu o vocabulário a partir daqui, direcionado cada vez mais para a noção de uma simbiose do humano com a natureza. O olhar de Kesselring vai então colecionando esses pedaços de mundo, como se vê nas experimentações do período e nos registros fotográficos que ela faz dos lugares que percorre.

Assim como o olhar se expande para abarcar formas do mundo, o manuseio da argila se transforma e, deixando de lado procedimentos que derivam da ação de desenhar, a artista passa a tratar essa matéria a partir da tatilidade. Tais desdobramentos fazem o trabalho avançar em direção ao escultórico, assumindo plenamente a tridimensionalidade. A partir de formas da natureza, as peças dessa fase resultam de uma mão que molda a cerâmica, criando amálgamas abstratos de vegetais, frutas, mariscos e conchas  e, ao mesmo tempo, faz incidir cortes precisos sobre as formas aí obtidas.

Os cortes geram fragmentos contendo elementos orgânicos embaralhados e fundidos entre si, organizados em arranjos ora horizontais, montados na parede —configurando relevos que lembram pequenas paisagens acidentadas — ora dispostos sobre pequenas bases ou empilhados, formando pequenos totens.


Mas é sobretudo a instauração da visão numa modalidade háptica que vai indicar deslocamento dos registros anteriores do gesto, qualificados a partir do desenho e da gravura, para uma exploração tátil. A partir daqui, a percepção dos corpos se dá pela imersão sensorial e sinestésica no mundo. Junto ao interesse por re-habitar a própria visão, impregná-la de tatilidade, outro procedimento surge na paleta de possibilidades expressivas: a fotografia. Aprofunda-se aqui a atração pelas estruturas ambíguas e ao mesmo tempo pelo uso mais explícito da fusão de corpos com o mundo. A(s) série(s) “Aquáticas” testemunham essa nova etapa.

Nos anos seguintes o interesse pela tridimensionalidade — pelo escultórico — se acentua, quer seja na adoção plena de procedimentos de modelagem e moldagem na argila, quer seja na ocupação plena do espaço com o retorno da mesa como elemento da obra. Os vários gestos do escultórico — empilhar, juntar, separar, dividir, reunir — são índices do fascínio de Kesselring pela experimentação,  pelo processual, pela investigação “in progress”. Corpos que se separam, se dividem e se juntam novamente estão representados nos fragmentos que exploram a cada momento uma outra disposição no espaço: procedimentos de justaposição, dispersão ou sobreposição compõem a cada vez uma nova totalidade.

Nesse processo, o vai e vêm entre os vários modos de organização espacial exploram configurações em que os fragmentos conformam novas totalidades, em que os estilhaços de seres —  estruturas ambíguas — tornam-se com, coproduzem multiespécies[5]. Ao propor esses corpos  que mesclam o vegetal, o animal e o humano, a obra de Ana Kesselring sinaliza um ponto de partida para o pensamento contemporâneo que se centra na tentativa de superar o antropocentrismo. Trata-se aqui de desconstruir o pensamento antropológico, que delimita a vida humana como uma vida qualificada, em detrimento da vida animal e vegetal como desqualificada. Re-imaginar o mundo, criar outras corpotopias.



[1] AMBRIZZI, Miguel Luiz. O olhar distante e o próximo - a produção dos artistas-viajantes. 19&20, Rio de Janeiro, v. VI, n. 1, jan./mar. 2011. Disponível em:

http://www.dezenovevinte.net/artistas/viajantes_mla2.htm. Acesso em: 15 abr. 2021.

[2] FOUCAULT, Michel. As Palavras e as Coisas - Uma Arqueologia das Ciências Humanas. Disponível em: https://itunes.apple.com/WebObjects/MZStore.woa/wa/viewBook?id=2C9AB2D747E86B7AF5D3729A6019855D. Acesso em: 10 mar. 2021

[3] idem, ibidem.

[4] HARAWAY, Donna. “Anthropocene, Capitalocene, Chthulhocene”, in: DAVIS H.,  Etienne TURPIN, E. (eds.), Art in the Anthropocene, Encounters Among Aesthetics, Politics, Environments and Epistemologies. Londres: Open Humanities Press, 2015.

[5] HARAWAY, Donna. Op. cit.




Ana Kesselring – Corpos estranhos

Ligia Canongia

Os relevos de parede de Ana Kesselring dão sequência à pesquisa da artista sobre o que ela chama de “os corpos do mundo”, sobre as possibilidades de representação do corpo em sentido expandido, que não passa única e necessariamente pelo humano, embora sempre pelo orgânico. As peças expostas são magmas de fragmentos de corpos animais e vegetais, compostos após sua moldagem em cerâmica, sua coloração e esmaltagem, processo que inclui, portanto, a coisa viva e sua posterior fossilização.

Esse assemblage de moldagens, em que se sobressai o contato manual da artista com seus meios, remonta à linhagem moderna de Miró, Henry Moore, Noguchi e Gaudí, que se firmou pela busca das origens e do estado bruto das coisas, assim como das relações humanas diretas com a natureza e com o mundo do trabalho. Uma pulsão expressionista é latente na obra, não só pelas feições informes das colagens e pela diluição de suas figuras em um amálgama abstrato, como por criticar, consequentemente, a visada racionalista de certas vanguardas.

O acúmulo e a justaposição de elementos orgânicos fortuitos parecem nos falar de uma construção de urgência, pulsional, ligada ao inconsciente e às associações livres, que retiram da realidade e das coisas mais tangíveis uma forma inédita e desconhecida. Entendidas como uma arqueologia do cotidiano, as colagens da artista tratam da simultânea apropriação e desconstrução do real, tomando seus corpos como “pré-textos” para a formulação de um novo discurso, inscrito no campo aberto da linguagem.

A transfiguração dos seres reais nas agregações obscuras e ambivalentes de Ana Kesselring - ao mesmo tempo, naturais e artificiais, familiares e bizarras, rígidas e sensuais - atesta não somente o estranhamento produzido pela troca de seus contextos lógicos, como, principalmente, pela capacidade poética de fazer a realidade delirar e sair de sua estratificação normal. O que antes eram simples vegetais, frutas, mariscos ou conchas, ganha excentricidade e se envolve em uma atmosfera absurda, comparável à das figuras espantosas de Arcimboldo ou às deformações surreais.

Pensadores admiráveis, como Benjamin e Ernst Bloch já haviam detectado nos processos subjetivos da fantasia expressionista e surreal algo conectado a uma nova concepção do tempo histórico, aos fenômenos de transição que caracterizam uma realidade multi-estratificada e plural. Para Bloch, “a obra expressionista é uma consciência cindida que encontra seu todo nos fragmentos da realidade vivida” 1, e tal afirmação pode nos levar aos amálgamas de Ana Kesselring, por corresponderem à essa procura de totalidade e de unicidade perdidas, em meio aos pedaços da experiência contemporânea.

O aspecto expressivo e a sensualidade dos relevos da artista, contudo, são submetidos a um corte abrupto em suas superfícies. A mão que molda a cerâmica é, paradoxalmente, a mesma que faz incidir esse corte preciso sobre sua extensão. Partidos, mas simultaneamente organizados em um arranjo horizontal, os relevos entram numa tensão espacial que não apenas contrapõe à sua configuração turbulenta uma ordem inesperada, como conduz, pela horizontalidade, à ideia de possíveis paisagens.

Paisagens que se confundem com naturezas-mortas, estados morfológicos intermediários que rompem os gêneros da tradição, reviramento dos arquétipos figurais da realidade em um universo imaginário e improvável, tal é o mundo de Ana Kesselring, um mundo povoado de seres transversais e de estruturas ambíguas, que moldam e cortam nosso próprio olhar.

JORDÃO MACHADO, Carlos Eduardo – in “Um capítulo da história da modernidade estética: debate sobre o expressionismo”, UNESP, São Paulo, 1998.




Corps du Monde (Corpos do Mundo) ANA KESSELRING

Fabiana de Moraes - Março de 2015

Sobre a bancada, percebemos o jogo de transparências do papel de seda e do acetato que acolhe uma escultura em gesso, tirada do molde de chifres de um fauno. Algumas anotações, citações e fragmentos de ideias convivem com conchas, pedras, algas, corais, sementes, frutas. A luz é tênue, a composição remete à pintura. Séries de gravuras fixadas na parede indicam um estudo das formas naturais, animais, humanas, orgânicas.

Ao entrarmos no ateliê de Ana Kesselring, somos integrados a esse espaço de pesquisa e de experimentação, a esta coleção de tantos elementos coletados, colhidos, catados, moldados, impressos... Corps du Monde (Corpos do Mundo) é, assim, uma trama de processos, em que o próprio processo é objeto da artista. É um espaço de trabalho, de investigação in progress que evoca certamente o Lost museum de Mark Dion e a busca incessante por linguagens que tentam, pela arte, dar conta das formas e das coisas do mundo; com esse objetivo, lança-se mão de meios de expressão poéticos sintetizadores da matéria plástica, mas também das paixões da carne, os afetos, desafetos e desejos. Aqui, referências aos trabalhos de Kiki Smith são evidentes. Ana Mendieta, Berlinde de Bruyckere, Jan Fabre e Gabriel Orozco são nomes frequentemente citados pela artista.

Entre natureza morta e gabinete de curiosidades, o propósito é explícito: trata- se de identificar e reunir os elementos orgânicos e seus derivados artísticos, plásticos, em gesso, estampa, fotografia, desenho... Mas, de maneira distinta, roubada, desviada, Ana Kesselring não procura elaborar narrativas específicas ou dar conta das formas e da diversidade naturais do mundo, contentado-se em colocar lado a lado esses elementos. Manipulados e observados a partir de múltiplos prismas, eles são trazidos para a bancada do ateliê – extensão materializada do universo da artista, de seu íntimo – no qual são confrontados com percepções e representações de toda ordem: marcas afetivas, memórias corporais inúmeras, dores, alegrias, vivências.

As mãos que coletam, são aquelas mesmas que mergulham tais formas orgânicas para transformá-las em molde. Sejam elas polvo, chifres, batata-doce, fruta- do-conde, estrela-do-mar, essas formas voltam a se tornar volumes, agora em negativo, visto que são moldes, matrizes, contatos, sulcos, cavidades, índices. Do molde à fôrma surge então uma nova coleção de formas, de matéria outra, corpos

ainda. Gerir para gerar, da coleção, do acervo, à produção, as etapas se seguem, no ritmo repetido da experimentação.

Esse interesse em levar a cabo as necessidades próprias ao processo criativo levam a artista a percorrer museus de história natural, textos de cunho científico, mas também escritos filosóficos, além das residências artísticas e de aprofundamento de técnicas, em São Paulo, Berlim, Paris, Lisboa. Paralelamente, Ana Kesselring não exclui de sua poética o fato de rever constantemente sua própria história, as referências, os personagens, os percursos, as mudanças. O processo é intenso e envolve estudos, anotações, pesquisa, elaborações, colaborações.Há algo que sugere o desejo de agregar, classificar, inscrever as formas, os elementos que ela seleciona numa taxonomia particular: a dela.

A artista parece não poder sucumbir à sonolência das normas e dos nomes. Também não bastaria renomear o mundo e se satisfazer das formas existentes. É necessário compor, propor, desnomeando-as e desordenando-as, à sua maneira, à maneira de Ana, para que deixem de ser coisas mundanas, ordinárias. E, para tanto, ela segue lógicas inventadas pela poética, divergentes, distintas daquelas que o mundo regem. Surgem, assim, outros ecossistemas e as tais novas taxonomias apresentam-se naturalmente.

Da forma à forma, das naturais às puramente plásticas, sem interrupção, Ana Kesselring acredita na continuidade daquilo que nos constitui, a matéria. Segundo essa lógica, a organicidade dos elementos e dos seres da natureza pressupõe uma topografia compartilhada – a linha que delimita um vegetal ou uma fruta é aquela mesma que traça a espiral da concha do caracol, as nervuras de uma folha, a aspereza da areia, do cascalho, as curvas, sulcos, poros, orifícios e superfícies do corpo animal. Por meio de múltiplas metamorfoses – ou por continuidade, simplesmente – a linha conduz de uma forma a outra, de um elemento a outro, do corpo ao corpo.


O que é uma Corpotopia?

Henrique Marques-Samyn - Rio de Janeiro, 2009

Pode-se vislumbrar uma pretensão totalizante nas corpotopias de Ana Kesselring; algo que se efetiva através da repetição de um conjunto particular de elementos formais – sobretudo as linhas e as cores – e que tem por efeito a evocação de uma espécie de organicidade que, não obstante, esquiva-se a qualquer possibilidade de definição restrita. Desse modo, se é possível dizer, de uma corpotopia, que sugere uma forma viva, jamais é possível determinar propriamente que forma é essa; por outro lado, a recusa mesma da definição implica a assunção da universalidade, o que eleva a obra a uma condição particular: uma corpotopia opera, afinal, como uma espécie de arquétipo, de padrão formal que insinua – sem jamais afirmar – sua similaridade com um universo de indefinidas estruturas orgânicas.

De fato, na raiz das corpotopias estão imagens de corpos humanos e animais – que, não obstante, são desconstruídas, elaboradas e transformadas por Kesselring até o ponto em que toda a possibilidade de identificação desaparece. O que resulta disso é um jogo que implica, simultaneamente, o reconhecimento estético das corpotopias como algo que nos é familiar, enquanto partícipe da totalidade orgânica de que também somos parte, e um estranhamento que está relacionado à impossibilidade mesma de identificá-las a qualquer ente conhecido; mais ainda, à radical impossibilidade de nomeá-las, a não ser utilizando este termo – corpotopia – que, enquanto neologismo, não é capaz de reduzir o distanciamento provocado, antes o expandindo também para uma outra dimensão: a lingüística.

Cabe ressaltar que a própria ciência biológica confere um elevado valor ao estudo morfológico dos organismos a partir de perspectivas descritivas, funcionais e evolutivas. Isso não quer dizer, evidentemente, que se trate de uma investigação análoga à empreendida por Ana Kesselring, cujo sentido é essencialmente artístico; contudo, há que se considerar que também a arte constitui para o homem uma forma de conhecimento, embora segundo critérios diversos. No caso das corpotopias de Kesselring, a questão colocada diz respeito à relação mesma do homem com a totalidade orgânica a partir de sua experiência estética; cabe observar, afinal, que aquela relação dialética de reconhecimento e estranhamento questiona, em última instância, a própria condição humana, apartada por uma tênue linha do vivente universo que o cerca.

Em uma derradeira tentativa de se encontrar uma resposta para a indagação que intitula este breve ensaio – “o que é uma corpotopia?” – , pode-se tomar como objeto de análise o próprio nome utilizado por Ana Kesselring, recorrendo-se à etimologia. Observaríamos, nesse caso, que aquele neologismo é composto por dois vocábulos de origem latina: corpus, que significa "corpo" num sentido amplo – incluindo não apenas os corpos humanos e animais, mas também a carne, a gordura, o tronco das árvores e mesmo os cadáveres; e topos, lugar. Poderíamos, por conseguinte, conceder para o termo a vaga acepção de ‘lugar do corpo’, em que não incorreríamos em

total imprecisão: uma corpotopia é, de fato, uma forma onde todos os corpos parecem habitar in potentia; em outras palavras, a realização estética do rudimento de tudo o que vive – inclusive nós mesmos.


O projeto Corpotopias de Ana Kesselring nasceu a partir da mistura de desenho, gravura e escultura e, como o próprio nome sugere, o trabalho se desdobra ao redor da construção ou re-construção do corpo.

O ponto de partida de Kesselring são estudos anatômicos em que o corpo é desconstruído para depois ser reinventado. O corpo desconstruído ou por ainda ser, é transformado em lindas formas orgânicas e fluídas que encarnam ao mesmo tempo as espécies humana, animal e vegetal.

Nascida em São Paulo, Ana Kesselring estudou Artes Plásticas na Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP) e fez seu mestrado na Université Paris VIII, onde faz atualmente seu PHD. A artista vive e trabalha em Paris.

Abaixo, a entrevista que tive o prazer de realizar com a artista em meio às suas telas e desenhos que expôs recentemente na Galeria Veredas em São Paulo.


Ju Chohfi

O que veio primeiro? Os animais ou corpo humano?
Os pássaros, o mundo animal. Eu me inspiro muito em livros de história natural. Parte da minha pesquisa em Paris, foi sobre um livro de Albertus Seba, que possui toda a representação do que era chamado Reino Animália, composto de animais exóticos chegados do mundo inteiro na Europa nos séc. XVI e XVII. A ilustração do livro foi feita por artistas da época.

Estudei muito a classificação na história natural, uma decodificação da natureza de forma racional, que acabou gerando uma separação do homem do resto das coisas que o cercam. Além disso, fui influenciada pela idéia do livro Les Mots e les Choses do Foucault, no qual uma concepção mais fantástica do universo é retomada... com o estudo da anatomia, a abertura dos cadáveres, o corpo que era muito mais ligado ao resto do universo, foi cada vez mais decodificado e isolado do resto do mundo.

Num primeiro momento do trabalho, existe um corpo do mundo, o corpo animal, vegetal, e tudo que é vivo, numa tentativa de amalgamar tudo num corpo só e criar um corpo que não seja isolado ou separado dos outros corpos que o cercam.

Porquê a escolha do corpo? E o feminino?
Desde a minha graduação, a questão do corpo já estava latente...trabalhava com o corpo animal, fiz gravuras inspiradas em desenhos dos artistas viajantes e trabalhei muito no sentido de desconstruir essas figuras.

Quando cheguei na França essa questão, se juntou a um processo pessoal meu, um processo de descoberta do meu próprio corpo. E isso foi desabrochando. O primeiro material que eu escolhi como fonte de inspiração foi o livro de esculturas anatômicas, La Specola, no qual a figura da Venus di Médici me chamou a atenção. Uma figura de cera deitada, de cabelos longos e um colar de pérolas com uma caixa que abre na região do abdômen. A caixa quando aberta mostra o interior do corpo. Neste momento eu estava lendo o livro de Didi Huberman – Ouvrir Venus – que tem um capítulo dedicado justamente ao estudo dessa Venus e que descreve toda essa transição do exterior para o interior, os requintes e a estranheza dessa mulher, uma forma plasticamente harmônica que quando aberta, expõe um interior visceral, constrangedor, que incomoda e traz a tona essa condição humana e sua fragilidade.

Eu comecei a usar essas figuras anatômicas e continuava a desconstrução do corpo e nos primeiros trabalhos não havia tanto essa questão do feminino e o corpo humano era misturado à formas animais e primitivas. A minha tentativa era de sobrepor e fundir esses corpos. Porque uma questão importante pra mim é a separação do humano do resto da natureza.

Seu trabalho é muitas vezes sutil, exigindo um olhar mais atento para ver o que está realmente acontecendo, como nas gravuras por exemplo.
Eu acho que exige um olhar mais introspectivo, um olhar mais silencioso e um olhar com alguma referência porque muitas vezes as pessoas passam batido...

Então como você espera que as pessoas que realmente ‘olham’ vão reagir?
Eu não penso nisso quando eu produzo. o meu trabalho é bem autobiográfico, quer dizer, não que ele transmita isso no ‘produto’ final mas acho que está ligado com passo da minha existência, uma ligação mais comigo e com as minhas experiências do que com o espectador...é engraçado... embora eu não acredite que exista obra de arte enquanto o trabalho não for visto por outras pessoas mas na hora de produzir, não é uma questão que me influencia.

É impossível não pensar em Kiki Smith ou Louise Bourgeois quando vemos o seu trabalho. Mas o seu trabalho diverge na violência e confrontamento trazendo a transformação do corpo...mais suave e sutil...

É, eu acho também...é um comentário até bem parecido com uma crítica que acompanhou um pouco o meu trabalho, a Ligia Canongia que está curando a exposição da Nan Goldin agora... ela fala justamente isso, que tem uma coisa mais mórbida no trabalho da Smith, que eu passo meio à deriva... por mais que haja, e há, um sentimento mais violento por trás, sempre fica uma coisa sutil...longe de uma Marina Abramovic... Acho que no fim, tem uma coisa do belo que me atrai muito...uma questão problemática na arte contemporânea. Não que eu seja a favor do belo, mas acho que você pode tratar questões violentas e fortes e acabar saindo uma coisa até bonita e poética. Talvez a minha angústia esteja atrás de muitas velaturas (risos).

Você poderia descrever a evolução do seu trabalho nos últimos anos?
Acho que nas gravuras, alguns anos atrás, havia uma preocupação de inovar no sentido técnico, não que sobrepor várias chapas de gravuras seja um processo novo mas eu acho que a maneira que eu trabalhava era totalmente intuitiva e sempre procurava uma coisa mais experimental, plasticamente, as gravuras proporcionaram um resultado mais desconstruído, como se fosse uma passagem.

Logo no início do meu mestrado, elegi como fonte de estudo a artista Kiki Smith que tem como foco central o corpo feminino, e que trabalha não só a anatomia mas desenvolve a questão do feminismo: o lugar que essa mulher ocupa na natureza ou em uma sociedade machista, questões importantes para o meu processo. Posso traçar um paralelo na estrutura do meu mestrado com o trabalho de Smith: O Corpo Fragmentado, O Corpo Abjeto, e O Corpo Reconstruído e Fabuloso...

Quando terminei o processo de análise do trabalho da Kiki Smith, que foi inclusive um período em que eu parei de produzir, quando voltei à produção, eu realmente quis encarar mais essa parte externa do corpo, um corpo com forma e que está no espaço e sempre com a idéia também de um corpo que porta algumas indumentárias, alguns adereços, uma mistura que vem lá dos livros de história natural. Voltei para a pintura, quis voltar para um processo que não fosse tão indireto como o da gravura, que fosse um processo com menos etapas de transição, uma coisa mais direta...a pintura é na verdade a minha formação mas eu não pintava fazia uns 8 anos, desde a exposição no Maria Antonia em 2000 e pouco...

A evolução do trabalho é realmente um processo que corre paralelo ao meu, traz a idéia da metamorfose também...que já tinha em alguma das gravuras lá atrás, tem umas inclusive que tem um casulo...embora agora já seja um corpo visto de fora, ainda é um corpo em transformação.

Você já está em Paris há 5 anos, como a cidade influencia o seu trabalho?
O meu processo lá é um processo bem isolado. Eu acho que Paris não propicia o diálogo entre os artistas como Berlim por exemplo, eu adoro ir para Berlim trabalhar por uns períodos. Acho que Paris atualmente tem uma comunidade de artistas muito individualista... não rola uma troca, eu acho que Paris influencia mais no sentido de eu estar isolada da minha origem...podendo olhar para mim e para o Brasil de forma diferente...esse deslocamento influencia minha maneira de me perceber e de ser mais brasileira, podemos assim dizer.

No que está trabalhando no momento ou quais são projetos futuros?
Pensei muito na continuação das pinturas...uma questão que eu quero retomar, é a questão do tridimensional, da escultura...a idéia de misturar e sobrepor os corpos na tridimensionalidade. Tem também a questão da angústia escondida nas velaturas...penso em resgatar os rascunhos, eu acho que o trabalho no estado inicial, bruto, tenha uma força que vai se perdendo com as camadas de tinta...

Outra questão é a fotografia...estou olhando bastante para as fotos da modelo das telas e de outro trabalho e fotos feitas à partir da internet, mas aí seria mais um desvio para o erótico talvez...não sei...(risos).